sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A animalidade de nossa humanidade – parte 2


Falávamos anteriormente das críticas ao utilitarismo e da problemática centralidade dos conceitos de dor, prazer e bem-estar aí envolvidos. No entanto, a teoria mais kantiana em prol dos direitos dos animais, tal como advogada por Tom Regan, não se sai muito melhor e não evita algumas das mesmas objeções.
É verdade que a noção de “sujeito-de-uma-vida”, a qual atribui um valor inerente a qualquer criatura que experimente ser um tal sujeito, implica a consideração de um respeito (kantiano) como fim em si mesmo – ou ao menos o respeito de não ser tratado como mero meio, na esteira de uma atribuição de “direito”. Ser o “sujeito-de-uma-vida” é ter uma vida que importa para este sujeito independentemente de ela importar para qualquer outro. E isso por si só garante o direito a esta vida de não sofrer danos. Mas as condições suficientes elencadas por Regan para constituir este valor inerente a uma vida são ainda muito próximas das condições que conferem a nós a nossa própria humanidade: ter percepções sensíveis, crenças, desejos, motivos e memória. Mas até onde devemos ir, afinal, na questão do respeito e na atribuição dos direitos? Ultrapassado o limiar destas condições, já não temos deveres de respeito e de consideração? Ainda fica a pergunta: por que uns e não outros? Será este mesmo o critério decisivo? E se ele excluir algo que na verdade não deveria excluir – simplesmente porque são condições demasiadamente humanas? Além disso, persiste aqui ainda a autorização de um critério decisional por aproximação quando se trata da morte, por exemplo: a perda engendrada pela morte de um animal não é equivalente à perda engendrada pela morte de um ser humano. Regan o justifica em termos de oportunidades – o que o leva ao argumento contraintuitivo segundo o qual há mais dano na morte de um cão normal e saudável do que na morte de um ser humano em coma irreversível. O cão normal e saudável, ao viver sua vida, teria mais oportunidades de satisfação do que este ser humano – e isto parece correto, mas apenas de um ponto de vista pragmático, porque algo fica ainda por ser explicado no fato de que lamentamos enormemente mais a morte de um ser humano em coma irreversível do que a morte de um cão saudável (por mais que o possamos lamentar também, e por muito tempo). E não se trata somente de um lamento pela perda de um valor inerente à pessoa enquanto fim em si. Mas de um valor que apenas a vida humana possui, independentemente do quanto ainda poderia ou não fruir de suas oportunidades e capacidades.
Nenhuma destas abordagens dá conta do fato desta incomensurabilidade. Nenhuma explica realmente, como o diria Diamond, porque não nos comemos uns aos outros quando morremos.
Por outro lado, nenhuma destas abordagens consegue realmente ultrapassar a imposição de um critério de distinção que, em algum ponto, torna-se meramente arbitrário – ou, inclusive, e em seus próprios termos, especista. Apesar de todas as boas intenções, quando em condições iguais se trata de decidir quem deve viver, os seres humanos acabam sempre em melhor posição. E quando em condições desiguais se trata de decidir quem leva a sorte, é sempre a melhor cognição ou a melhor capacidade de fruição da própria vida.
Há algo de muito estranho em teorias que fazem a defesa dos animais nos termos de sua maior ou menor proximidade com os seres humanos.
Se a questão é o animal, talvez devêssemos parar de nos perguntar o que eles têm em comum conosco.
Mas se a questão é também a nossa própria animalidade, – reconhecendo-a e compartilhando-a com os outros animais – talvez devêssemos também aceitar sem acusação especista o fato de que não comemos nossos mortos, de que os enterramos de um certo jeito, de os lamentamos diferentemente, e de que sua vida é diferente aos nossos olhos simplesmente porque é humana. Algo assim não precisa – e não deve – engendrar um tratamento desumano dos outros animais. Uma conclusão não precisa – e não deve – seguir-se da outra: admitir a nossa diferença não significa admitir a nossa suposta superioridade nem qualquer requerimento de tratamento especial ou melhor ou mais utilitário.
As questões de uma “ética animal” talvez tenham alcançado um patamar de benefícios irrecusáveis, mas as suas reflexões parecem ainda depender de um ponto de vista preconceituoso ou tendencioso – ou, ao menos, menos aberto às verdadeiras complexidades aí envolvidas. Como sugere Raimond Gaita: falta ver as coisas como elas são. E para nós, humanos, elas não são sempre decidíveis por princípios sim e não, e não são sempre facilmente desligadas de nossa concepção de nós mesmos, seja em nossa animalidade seja em nossa humanidade.
Fica por fazer uma reflexão que explique porque nos é mais fácil falar em “acabar com a miséria” de um gato – quando não diríamos isso da mesma maneira de um ser humano em fase terminal numa cama de hospital. Que explique porque a morte de um gato, por dolorosa que seja, não perdura como perda da mesma maneira como ela perdura quando quem morre é um ser humano próximo. E porque faz sentido a cerimônia de adeus ao ser humano, mas não a mesma cerimônia de adeus a um cão – por mais que possamos querer que o seu corpo não seja tratado indignamente, e por mais que possamos querer respeitar a dignidade dos corpos da maioria dos seres vivos (é indigno que se atropele um animal silvestre dezenas e dezenas de vezes, como é indigno colocar animais de estimação no saco de lixo – indigno para eles e a vida que puderam ter tido). Mas por que isso é moralmente condenável, mas não criminalmente punível? Não é um tratamento igual no que se refere aos seres humanos.
Fica por fazer uma reflexão que explique, igualmente, nossas relações cotidianas com os outros animais. Não apenas a maneira como procedem bem ou mal os abatedouros, os circos, ou os rodeios, mas a maneira como convivemos com gatos, cachorros, vacas, galinhas e animais silvestres. Não nos cabe interferir na predação – como alegam alguns de maneira completamente irresponsável num meio acadêmico que não deveria se calar a este respeito, – mas com certeza nos cabe refletir sobre o modo como tratamos os animais que comemos e se os devemos mesmo comer. Mas o que isso significa, também, cotidianamente, para nós? O que são vacas e cachorros e gatos para nós? Podemos muitas vezes ser amigos desses animais – e de maneira muito intensa, muito verdadeira – mas os teríamos na mesma conta dos nossos amigos humanos?
As coisas tais como elas são, são muito mais nuançadas e complexas do que o supõem as teorias que pretendem regular nossas atitudes e comportamentos.
J.M. Coetzee, em seu livro Desonra, reflete sobre o modo como podemos nos comparar aos animais quando caímos em estado de desgraça. A filha de David Lurie, violentada e para sempre vulnerável em sua condição de mulher habitando sozinha uma fazenda da África do Sul, responde que cumpre agora começar tudo de novo, do zero. Mas do zero, e mais nada. Como um cão, diz Lurie. Sim, como um cão, diz Lucy, quando tudo o que resta de sua própria humanidade é esta animalidade nua, pronta para sofrer outras violências, e aberta a que tudo seja sempre repetido. Talvez isto tenhamos de fato em comum com os outros animais, o fato de que somos todos vulneráveis – por mais que a filosofia faça parecer diferente e não se ocupe quase nunca desse assunto; nós, como eles, somos vulneráveis e estamos sempre aí na eminência da queda, tanto da desgraça e da desonra, quanto da morte. Este pode ser o traço comum que não nos permita olhar no olho de um animal quando o matamos – ou quando um soldado se recusa a atirar num inimigo com as calças nas mãos. E  este pode então ser o traço comum que nos impeça justamente de fazer-lhes o mal. Mas nós podemos pensar a respeito, e eles não. E isso nos dá uma vantagem – e uma responsabilidade.
Enquanto as reflexões de uma “ética animal” não derem conta destas questões, estaremos ainda longe de explicar porque para tanta gente a analogia dos abatedouros com o holocausto é tão repugnante. E porque ainda assim, há os que continuam a insistir nela.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A animalidade de nossa humanidade – parte 1



Desde 1975 a Libertação Animal tem advogado em nome daqueles que não falam a nossa língua filosófica dos direitos e dos deveres e das responsabilidades. São seres humanos preocupados com outros seres sencientes ou “sujeitos-de-uma-vida” – e preocupados com os seus próprios atos e com suas próprias atitudes relativamente à comunidade de vida como um todo (que de nós parece depender de maneira, cada vez mais, tragicamente) e à comunidade humana (que traça do alto os seus juízos de valor sobre a consciência e a consistência dos seus argumentos). Pontos de vista inevitavelmente humanos acerca do que seja a animalidade e humanidade desta relação que é também inevitável no compartilhamento de um mesmo mundo sem saída e sem beira. Ninguém pergunta aos animais eles mesmos, porque a sua limitação em nos responder e em defender a si mesmos em seus próprios nomes, já os exclui de qualquer outra consideração mais parcimoniosa. Falta-nos, neste caso, a humildade de um reconhecimento – quanto à nossa própria animalidade.
É claro que desde Jeremy Bentham retiramos da racionalidade o foco da distinção e do critério quanto à melhor maneira de se tratar os outros animais – “melhor” no sentido do mais justo e mais igualitário, porque desde então o que conta não é saber se eles podem pensar ou falar, mas se eles podem sofrer. O critério utilitarista engendra assim necessariamente que se coloque a todos os seres sencientes como passíveis de consideração moral: se o princípio requer a maior felicidade (leia-se “prazer”) possível para o maior número, se a correção de nossas ações é estabelecida com a realização máxima desse princípio, e se as outras criaturas participam conosco desse mesmo interesse, então nada justifica que se as faça sofrer em nosso próprio benefício. Por este critério, não somos mais do que eles – por mais que possamos expressar esta ideia em obras filosóficas, algo de que eles jamais serão capazes. A realização de obras filosóficas não conta para o cálculo dos benefícios da maximização da felicidade, a não ser quando surgem as bifurcações alternativas dilemáticas – numa casa pegando fogo, salvar o filósofo em detrimento de um cão é sempre preferível, mas não porque doa mais na pele do filósofo, senão porque o cão não sabe pensar nada de verdadeiramente profundo; um ser humano tem mais a perder em termos (do quê, realmente?) de conhecimento e oportunidades do que um cão; o que sempre nos coloca numa encruzilhada quanto aos mentalmente próximos de um cão, mas que ainda contam de alguma forma como humanos; não só o fato de que parece haver mais a ser salvo num filósofo do que num deficiente mental, mas no fato de que fica realmente difícil argumentar em prol do salvamento de um débil mental em detrimento de um cão sem cair no enquadramento da acusação especista.
É claro que não nos deparamos cotidianamente com casas em chamas e que os dilemas morais estão aí para se testar o alcance das teorias – e o quão longe se pode ir com os seus argumentos filosóficos (para o bem e para o mal) – e que o movimento da “libertação animal” fez mais pelas criaturas não-humanas em um quarto de século do que qualquer outra proposta anterior a seu favor. Ter posto de lado o critério da racionalidade e reconhecido uma semelhança de interesses entre humanos e não-humanos é um dos grandes méritos da corrente utilitarista.
Peter Singer é sem dúvida o mais influente filósofo contemporâneo cujo trabalho tem efetivamente “liberto” os outros animais de suas jaulas. Trata-se da noção de “igual consideração de interesses”: do fato de que devemos reconhecer nas criaturas a sua capacidade de sentir e de, portanto, ter interesses e, finalmente, ter direitos (muito embora Singer não possua uma teoria dos direitos e rejeite, como os demais utilitaristas clássicos antes dele, os “direitos naturais”). É claro que o interesse principal é aqui o “interesse em não sofrer” e em usufruir maximamente de sua “felicidade” (o que quer que isso signifique para cada um). Em nossas considerações morais cotidianas, isso implica numa atitude amplamente coerente que nos leva à necessidade do vegetarianismo, da abolição da instrumentalização animal para diversão e experimentação, entre outras medidas de implementação de bem-estar. Qualquer favorecimento ao benefício e felicidade humana incorre puramente, nesses casos, num preconceito baseado em “espécie” tanto quanto o racismo e o sexismo são preconceitos baseados em raça e gênero.
Se são grandes os ganhos para os outros animais – e se o seu bem-estar é assim de fato aumentado inclusive em termos legais, institucionais e culturais (o que mostra as vantagens pragmáticas do utilitarismo sobre outras teorias morais: nunca se falou tanto em bem-estar animal, nunca antes o vegetarianismo teve tamanha ênfase e endosso, nunca antes pareceu tão óbvio o horror do aprisionamento para fins de mero entretenimento) – há uma miríade de questões que fica por ser respondida pela teoria da igual consideração de interesses e pelo critério da senciência: desde a aparente contradição envolvida em medidas de conservação animal que são benéficas a longo prazo, e às vezes apenas para uma espécie como um todo, mas que engendram o sofrimento de alguns indivíduos (a começar pela castração ou tratamentos cirúrgicos), passando pelo fato de que mortes indolores não pareceriam neste caso intrinsecamente más ou moralmente condenáveis (nem mesmo para humanos inconscientes ou comatosos ou em situações semelhantes), ou pelos absurdos gerados na atribuição de valor moral igual a seres cognitivamente semelhantes mas que diferem em espécie, objeção à qual a teoria apenas acrescenta mais um problema ao fazer distinções de tratamento por “aproximação” ao humano; afinal, não me parece menos especista dizer que “seres humanos normais possuem capacidades que excedem largamente aquelas dos animais não-humanos, e algumas dessas capacidades são moralmente significativas em contextos particulares” – teríamos tanto mais a perder! (Singer 1999, p.87).*
Isto me parece apenas ainda um procedimento que tanta resolver as coisas em termos de semelhança enquanto autoriza diferenças de tratamento; dito de outro modo, ainda uma recomendação de respeito por “aproximação”, e não na consideração da própria diferença. Ou deveríamos respeitar a dignidade das mulheres porque elas de fato não diferem tanto assim dos homens? Nem os negros tanto assim dos brancos?

*Singer, P. In: Coetzee, J.M. The Lives of Animals. Gutman, A. (ed.). Princeton University Press, 1999, p.85-91.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Imaginação simpática e literatura

Na minha contribuição anterior ao blog do GERMINA, tentei responder à questão sobre de que modo obras literárias enriquecem o nosso contato cognitivo com o mundo a partir da tentativa de concebê-las como artefatos epistêmicos, i.e., artefatos cujo uso é o fundamento do estatuto epistêmico positivo de algumas de nossas crenças. Uma segunda alternativa, porém, é o de que obras literárias enriquecem o nosso contato cognitivo com o mundo enquanto artefatos que habilitam nossas capacidades imaginativas, empáticas e conceituais. A brevidade desta publicação não permite que eu explore essa alternativa em todo o seu potencial, de modo que a presente contribuição será bastante limitada. Em particular, a presente contribuição pretende, primeiramente, apresentar um argumento favorável à ideia de que nossas capacidades imaginativas e empáticas, exercitadas em conjunto, enriquecem o nosso contato cognitivo com o mundo e, posteriormente, sugerir exemplos de alguns poemas que habilitam tais capacidades.

Sem rodeios, o argumento pode ser construído da seguinte maneira:
P1. Se o exercício da imaginação simpática nos permite ter acesso a determinados aspectos da realidade, então o exercício da imaginação simpática possui um funcionamento cognitivo (condicionalmente) apropriado.
P2. Se o exercício da imaginação simpática possui um funcionamento cognitivo (condicionalmente) apropriado, então a imaginação simpática é uma fonte legítima de garantia epistêmica.
P3. O exercício da imaginação simpática nos permite ter acesso a determinados aspectos da realidade.
Logo,
C1. O exercício da imaginação simpática possui um funcionamento cognitivo (condicionalmente) apropriado (modus ponensP1P3).
C2. A imaginação simpática é uma fonte legítima de garantia epistêmica (modus ponensP2C1).
O argumento poderia ser construído, alternativamente, a partir de silogismo hipotético seguido de modus ponens. O resultado final seria o mesmo. Para uma explicação de cada uma das premissas do argumento, leia aqui.

A meu ver, alguns bons exemplos de poemas que habilitam a imaginação simpática são “Visitando o pavilhão sul do Templo Chongzhen”, de Yu Xuanji – para o qual fiz uma tradução“Fragmento 395”, de Anacreonte; e “O Cutelo”, de Dirceu Villa. Este último, de um poeta brasileiro e contemporâneo, trata-se de um poema incrivelmente bem construído. Nele, Villa, através de elementos como ritmo, aliterações e uma escrita permutacional, cria um poema cuja dinâmica facilita, a meu ver, o efeito estético desejado – estimulando o exercício de nossa imaginação simpática que, neste caso, é direcionado à perspectiva dos porcos cujos corpos estão expostos no açougue.

São cortes na pedra lanhada de sangue, / ou fendas, de onde a morte o espreita, / açougueiro no sonho vermelho, acariciando / o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo, / que corta. (...)
Villa adota dois pés básicos na construção do ritmo dos versos que compõem o poema: o iambo (—) e o anapesto (∪∪—). Um iambo é um pé constituído por uma sílaba átona () seguida de uma tônica (—). Um anapesto é um pé constituído por duas sílabas átonas (∪∪) seguidas de uma sílaba tônica (—). O resultado de uma sequência de anapestos soa familiar a um galope: papa-TUM, papa-TUM, papa-TUM, papa-TUM. E trata-se de um pé utilizado com muita frequência durante todo o poema, o que lhe dá, a meu ver, uma grande dinamicidade. Para exemplificar o quão recorrente são os anapestos ao longo do poema, tomemos seus seis primeiros versos: “São ossos. E às vezes, a banha amarela nos ossos; / e às vezes, o sangue vermelho nas unhas. / São porcos, ou são as cabeças dos porcos, / penduram num gancho as cabeças, / ou a cara de espida morte dos porcos / no vidro embaçado do açougue.” Nestes seis primeiros versos, podemos contar cinco iambos acoplados de 18 anapestos!

Acresça-se a isso as muitas aliterações presentes no poema, como, por exemplo, a aliteração quadrimembre em b no sétimo verso “Ou o branco, mas branco embebido de rosa”, ou as aliterações bimembres f-fs-s e c-c e trimembre t-t-t no último verso do poema “o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo, que corta.”

Por fim, Dirceu Villa une um ritmo “agalopado” às abundantes aliterações e à escrita permutacional adotadas no poema, na qual ele gira e reposiciona as palavras, num jogo de linguagem que, como observou Ricardo Domeneck, “parece imitar o de uma câmera em filmagem giratória, ou, talvez, por um segundo, o que adentra os olhos do porco, fixados em sua cabeça, que cai após ser cortada.” Com efeito, os elementos adotados por Villa na construção do poema são capazes de elicitar a imaginação simpática do leitor com considerável facilidade.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

É possível entrar na Lei?

Nesta semana concluí minhas últimas tarefas enquanto graduanda em Direito. Em um mês colarei grau e receberei o diploma de bacharel. Acho que por esse motivo venho me perguntando e refletindo acerca do acesso à justiça e dos vários problemas enfrentados por quem consegue acessá-la – poucos. Morosidade, altas despesas, falta de orientação sobre o que fazer e, ainda, por incrível que pareça, falta de conhecimento acerca da sua demanda e da situação a qual se encontra. A maioria das pessoas que consegue acessar a “justiça” (diga-se de passagem, levar seu pedido ao conhecimento de um juiz ou até mesmo ter acesso a outros meios de resolução de conflitos ou prevenção destes) não sabe o que estão fazendo com o seu pedido de alimentos (pensão alimentícia), com seu pedido de remédios, leito em um hospital ou o que acontece com a pessoa a qual a agrediu, estuprou, furtou. Nem mesmo aqueles que são acusados de algum delito muitas vezes sabem o porquê ou, quiçá, sabiam que determinadas ações poderiam configurar um crime ou resultar em dever de pagar indenização a quem sofreu o dano, por exemplo.
Então eu fico pensando: Como pode ser naturalizado uma pessoa ser punida por algo que ela não sabia que era crime? Como pode alguém não saber o que está acontecendo com o pedido que fez “a um juiz”? E, como pode ser tão difícil acessar a justiça? E por que muitas pessoas, sequer, conseguem esse acesso? Será que quero fazer parte desse círculo vicioso onde só quem tem uma vida “mais justa” consegue o acesso à justiça? As pessoas pouco sabem a respeito de seus direitos e deveres. Desconhecem as leis e são exploradas por isso. Afinal, é a ignorância que produz o latifúndio.
Essas coisas me lembram histórias de Kafka, principalmente o conto Diante da Lei. Demorei um tempo para ter a compreensão que hoje tenho deste texto. Acho que podemos interpretá-lo de diversas formas, dependendo de como anda nossa vida no momento da leitura. É um texto curto, e por isso cabe trazer alguns recortes para cá:

Há um guardião diante da Lei. Um homem do campo vem até esse guardião pedindo para ser admitido na Lei. O guardião lhe responde que naquele dia não pode permitir sua entrada. O homem reflete e pergunta se depois poderá entrar.
– É possível – diz o guardião -, mas agora não.
Como a porta da Lei continua aberta e o guardião está ao lado dela, o homem se agacha para espiar. O guardião ri e diz:
- Preste bem atenção: sou muito forte. E sou o guardião mais subalterno. Lá dentro não há uma sala que não esteja vigiada por um guardião, cada um mais forte que o anterior. O terceiro tem uma aparência que eu mesmo não consigo suportar.
O homem não previa esses entraves. Pensa que a Lei deve ser acessível, [...]




              O guardião então alcança um banco para o homem do campo. Este, por sua vez, fica anos e anos esperando. Não mais se preocupava com os próximos guardiões, pois a impressão que tinha era a de que aquele era o único obstáculo par entrar na Lei. Às vezes, espiava entre a porta, mas não arriscava desobedecê-lo. Depois de um tempo:

– O que você quer agora? – diz o guardião. – Você é insaciável.
– Todos buscam a Lei – diz o homem. – Será possível que em todos esses anos que fiquei esperando ninguém tenha tentado entrar, além de mim?
O guardião percebe que o homem está se acabando e tem de gritar para que ele ouça:
- Ninguém quis entrar por aqui porque esta porta estava destinada somente a 
 você. Agora vou fechá-la.



Diante do modelo positivista, racionalista, individualista, capitalista (etc.) no qual está inserida a sociedade atual e, por consequência, o Direito, entrar na Lei é desejo de muitos e realização de poucos. A nossa Constituição Federal de 1988 – a legislação mais importante, que rege todas as demais – trouxe consigo a cara de “Estado Democrático de Direito” e vários outros nomes que nos levam a entender que, agora sim, nosso país "pensaria" nos direitos sociais, na igualdade, na saúde, na justiça e no acesso a justiça por todos. Apesar dessa constituição não ter nem 30 anos (pouco tempo para se consolidar) percebo que quase nada do que foi “prometido” nela acontece.
Segundo esta constituição, deveríamos pensar que o Direito teria de ser a última alternativa para alguém buscar seus direitos e garantias constitucionais. Porém, com esse modelo de Estado que temos – e que vamos ter por um bom tempo, basta analisar o Projeto de Emenda Constitucional 55/241 que tramita no Senado – a via judicial se mostra a única alternativa para muitas pessoas. Só que, apesar disso, muitas dessas pessoas não conseguem acessá-la.
Segundo a obra de Kafka, “O homem não previa esses entraves. Pensa que a Lei deve ser acessível”. Deveria. Mas não é! Se considerarmos que "entrar na Lei" é o acesso à justiça (uma garantia constitucional), definitivamente, essa tarefa não é tão fácil quanto aparenta. Pessoas de baixa renda não têm dinheiro para pagar os honorários de uma advogada, ou não têm dinheiro para pagar a passagem e ir até uma Defensoria Pública ou assistência judiciária gratuita fornecida pelas universidades. Pessoas do campo não sabem onde ficam as delegacias da cidade, não sabem o que fazer para constituir advogado, não sabem que precisam pagar seus impostos, não sabem que o crime de adultério não existe mais e perseguir e matar uma mulher pelo fato dela ser mulher é feminicídio, configurando crime hediondo no Brasil. 
Esse acesso à justiça não necessariamente será um acesso ao fórum, ou ter um processo tramitando. Se pensarmos que a função Direito também pode ser entendida a partir da concepção de uma jurisdição sustentável, ou seja, que passe pelo crivo das garantias constitucionais prevenindo e evitando conflitos maiores, integrando sociedade e meio ambiente, protegendo os povos tradicionais, evitando o abarrotamento do Poder Judiciário e fazendo o uso de outras formas de resolução de conflitos como a mediação, por exemplo, isso também seria uma forma de acesso à justiça, de "entrar" na Lei.
Se acessar a Lei não é possível para todos, alguma coisa há de ser feita. Minha aposta é na educação popular. É preciso sair da bolha acadêmica e ir para as comunidades, para o campo, para os assentamentos, para as escolas e falar sobre nossos direitos, sobre cidadania, sobre feminismo, sobre responsabilidade, sobre direitos trabalhistas, sobre ocupação, sobre greve. É preciso falar sobre a realidade das pessoas e não ficarmos criando teorias para problemas sociais sem saber a realidade de quem está inserido e sofrendo diretamente com esses problemas. Talvez assim fosse possível enfrentar todos os guardiões e entrar na Lei. 


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Notas poéticas sobre autenticidade e método


            Ontem assisti ao espetáculo da burocracia e lentidão do nosso sistema de produção de conhecimento. Chego à conclusão de que nossos métodos são tão ineficazes que acabamos tendo de gastar interminável tempo discutindo como faremos para torná-los mais produtivos, gerando o máximo com o menor dispêndio possível. Mas é aí que sou atingido pela ideia de que certa fraqueza de espírito nos garante que jamais alcançaremos um ponto de repouso a partir do qual possamos exclamar, enfim, sossegados: “essa é a maneira certa de proceder, de hoje em diante é assim que farei”! Acho que não preciso falar da infantilidade dos imaginários de massa, criados à base de leite achocolatado e ininterruptos comerciais de televisão. Não. Porque perdemos nossos princípios fundamentais, as fontes que nos permitiam falar na língua dos preconceitos. O pensamento instável, fugidio e incapaz de se aprofundar em um ponto específico é tristemente preenchido de tédio – certa medida de melancolia que turva a visão e estanca os ouvidos, incapacitando-nos de enxergar as cores da vida e de sentir a morte dos sons. Isso tudo é verdade, eles disseram.
            Mas quem disse que não posso ser aquilo que sou? Por que almejar o repouso e a segurança de fronteiras e prescrições sempre renovadas pela fria rigidez de um ideal estático? (Eu disse que não iria pregar como um falso moralista, e assim tentarei fazer). Afinal, de que servem nossos modelos institucionalizados de avaliação? Para medir a sapiência contida nas cabeças de nossos memoráveis cidadãos? Servem para o desprezo de diferentes tipos de aprendizado, para a rejeição da variabilidade de estilos cognitivos em prol da perfeição mais útil possível. Somos compulsoriamente levados a nos comparar mutuamente mediante valores cuja unidade de medida é baseada naquilo que importa. Mas nem queremos saber disso, isto é, dos resultados reais dos cálculos subjacentes à nossa insaciável aspiração à grandeza.
            Em sua época, vendo o monopólio informativo da grande imprensa que se anunciava, Stuart Mill afirmou que o povo se assemelhava a um rente gramado muito bem aparado, no qual não se podia ver um único “fio” de grama acima dos demais. Mill pensava no prejuízo que essa homogeneidade insossa poderia ter sobre a riqueza de nossos debates intelectuais e o surgimento de novas ideias. Acho que ele estava correto. Esse gramado tem de ser constantemente aparado para que sua deformidade, sua estéril falta de harmonia e beleza, não cause horror ou, o que é pior, o sublime espanto. Com estas manias controladoras e perfeccionistas, acabamos negando nossa natural diversidade. Nossos futuros adultos moderados que o digam, pois são ocupados com os passatempos mais variados e imbecilizadores, e, ao fim, se seu pensamento irrequieto perturba excessivamente o seu meio, tacam-lhe alguma droga goela abaixo. Um remédio que fará muito bem para os nervos daqueles com quem ele convive.
            A questão paradoxal é precisamente essa: não podemos negar às pessoas que se realizem, que busquem uma forma autêntica para expressar sua singularidade existencial da maneira como elas pensam e querem fazer isso. Mas nos deparamos com ferramentas e materiais absurdamente pobres para esta empreitada. É aí então que clamamos pelos cânones norteadores do espírito humano: queremos ser normais! Não suportamos o ameaçador senso do ridículo nem em pensamento! Todavia, queremos ser únicos e evitar a todo custo ser apenas a reprodução particular de um padrão geral. O que queremos é atingir a origem de tudo isso, a morada do padrão dos padrões, e por fim, viver a concretização de um sonho que é somente nosso.
            Mas talvez nosso sistema não seja tão precário e sua aparente lentidão seja apenas o reflexo de seu complexo funcionamento. Burocracia inútil! Eu xingo. Mas pra que tanta preocupação se isso só serve para impedir que nos ocupemos com algo produtivo? A pergunta lembra a simplória frase que neste momento embala o espírito da política nacional: “não pense em crise, trabalhe”. Mas então era só isso? É só para pararmos de nos preocupar com picuinhas e mazelas cotidianas e colocar a mão na massa, para sair do atoleiro econômico? Eu seria muito ingênuo se analisando esse bordão, pensasse: “mas nem um marqueteiro este governo tem, senão não teriam usado uma frase impopular que sintetiza tão bem seu propósito de usar os cidadãos como instrumento para sair da crise, a custa de um bem tão humanamente valioso, o pensamento”. Seria ingênuo porque isso é exatamente o que eles sabem e querem, eles inflamam pelo recrudescimento, pela intensificação na aplicação dos padrões como fuga do problema dado. E a massa regorjeia: “essa conversa de que nos transformarão em máquinas ou zumbis ultraprodutivos com baixo teor de raciocínio crítico é a conversa dos esquerdistas preguiçosos, que jamais colocaram os pés no chão duma fábrica, não sabem o que é conquistar a verdadeira dignidade!”.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Lentes feministas para ver a ética

O que significa olhar para a ética através das lentes do feminismo? O que o feminismo teria a acrescentar às teorias morais? Que contribuição as feministas poderiam ter a uma tradição tão consagrada?

Annie Kenney and Christabel Pankhurst,
sufragistas britânicas (1908)
Como sabemos, as mulheres foram, por muito tempo – e ainda são, ainda que em menor medida – excluídas de uma série de atividades, funções, instituições e lugares que eram – e muitos ainda o são – considerados masculinos. A atividade intelectual é uma delas; dentro das atividades intelectuais, temos a filosofia; dentro da filosofia, a ética. A ética é, portanto, uma área de estudos da qual as mulheres por muito tempo foram, se não impedidas de produzir e pensar, desacreditadas e desqualificadas.

Mesmo que as coisas tenham progredido de algum tempo pra cá, e que muitas mulheres tenham condições de estudar e escrever sobre ética e quaisquer outros temas que queiram, temos de levar em conta que as teorias morais clássicas da filosofia, aquelas que qualquer estudante de graduação precisa ler, foram construídas por homens. O problema, entretanto, é que a maioria desses homens vivia em uma sociedade que excluía e inferiorizava abertamente as mulheres. Talvez o pior problema seja que quase nenhum desses teóricos pensava diferente daqueles de sua época.

Ainda assim, poderíamos conservar as teorias que esses homens produziram exatamente porque elas não têm nada a ver com questões de gênero, não é mesmo?
Bom, é aqui que colocamos nossas lentes feministas para ver que as coisas não são tão simples assim de separar.
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Mary Wollstonecraft, autora de Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792)
Para as pensadoras da ética feminista, por mais que grande parte das teorias canônicas da ética defenda a igualdade, a uniformidade e o julgamento desinteressado, elas reproduzem e alimentam a exclusão feminina através de uma visão limitada sobre o que pode ser a moralidade.
A ética feminista tenta mostrar que certos valores apregoados como morais poderiam ser fruto de concepções limitadas do que é masculino e do que é feminino, em que o que é feminino é sempre indigno de valor. Autoras da chamada “ética do cuidado”, ao perceber esse viés, buscaram trazer elementos tradicionalmente femininos para a discussão moral, mostrando que o cuidado, a maternidade e as emoções, por exemplo, podem ser bons pontos de partida para pensar a moralidade, ao mesmo tempo em que chamaram a atenção para o fato de que os princípios universais, a imparcialidade e o cálculo da utilidade talvez não o sejam.

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Angela Davis, autora de Mulheres, Raça e Classe (1981)
Além de revisões críticas de teorias e concepções clássicas e das teorias da ética do cuidado, há uma série de subdivisões e perspectivas feministas sobre a ética bastante diversa. O nó que as amarra parece ser precisamente a insistência na não-existência de uma teoria separada do contexto, da realidade em que se vive: nossas intuições mais imediatas, nossas crenças mais enraizadas, têm origem no mundo em que vivemos, nas milhares de coisas que aprendemos, nas situações a que fomos expostos, nos discursos que têm credibilidade em nosso meio. E teorizar sobre ética requer que coloquemos em movimento todo esse mundo interno que se cria a partir de tudo o que absorvemos de fora.


E é aí que as lentes do feminismo nos ajudam a ver que muitas das coisas que pensamos ser justas e imparciais podem ser reproduções acríticas daquilo que aprendemos, e reproduzir acriticamente uma realidade opressora com alguns grupos sociais é a forma mais eficiente de alimentá-la.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Crianças não entendem nada de ética!

“Como foi seu dia papai?”
“Trabalhoso e com muitos alunos chatos que não prestam atenção em nada de importante...”
“Se um dia você for meu professor não vou ser chata, pai!”
“Eu sei que não, meu doce. E o seu dia? Foi boa a escola?”
“Não fui chata na escola e fiz meu dever bem cedo e agora a mamãe já está me ensinando uma música nova!”
“É mesmo? E vai tocar pra eu ouvir?”
“Só outro dia quando eu já for mais profissional!”
“Ah!”
“Mas tem mais uma coisa legal!”
“O que?”
“Uma coisa que você pode ensinar pros seus alunos, eu acho!”
“Se eles quisessem aprender alguma coisa...”
“Eles vão gostar porque é uma história, pai!”
“E você acha que eu conto histórias nas aulas de filosofia, filha?”
“Pois devia, porque as pessoas gostam de histórias!”
“Você é que gosta!”
“Mas é que essa é fácil de entender! Deixa eu contar que você vai saber!”
“Nossa! Conta logo que eu quero saber, então!”
“É que lembra quando você tava me ensinando aquelas coisas de ética?”
“Lembro sim! Algum professor falou sobre ética na aula?”
“Não, não...”
“Então?”
“É que eu fui na padaria do seu Júlio comprar seis pão que a mãe pediu...”
“Pães!”
“Como?”
“Nada, pode contar...”
“E daí tinha uma criança na minha frente e eu tava esperando...”
“E você não é mais uma criança?”
“Sim pai, mas é que era uma criança mais criança do que eu!”
“Tá... conta!”
“Mas deixa eu contar então!”
“Prossiga...”
“Daí a menininha...”
“A criança era uma menininha também?”
“Siiiiiiim pai! Daí ela pediu quatro pão...”
“Pães!”
“Aff!”
“Conta filha!”
“E daí ela tinha três reais só, que eu vi. E daí deu mais de dois reais os pãos, e a moça deu o troco pra ela, né. Só que daí a menininha pediu se dava pra comprar um brigadeiro daqueles bem grandes que tem lá com as moedas que sobrou, e daí a moça disse que sim!”
“E?”
“E não dava pai! A mãe só deixa eu comprar um brigadeiro por semana porque é três reais! Mas a menininha é muito criança e não sabia, e daí a moça pegou as moedas que era menos de um real e deu o brigadeiro pra ela!”
“E por que eu deveria contar essa história pros meus alunos?”
“Você não falou que ética é fazer a coisa mais certa mesmo quando parece errado?”
“E você achou isso certo?”
“...”
“Não é tão simples, pequena... Imagina só se agora a moça começar a dar brigadeiros pra todas as crianças que não tem dinheiro suficiente?”
“Não sei se ela vai fazer isso pai...”
“Não interessa!”
“Como assim?”
“É que a atitude dela não é certa porque se ela fizer isso todas as vezes que uma criança não tiver dinheiro para comprar um brigadeiro, daqui a pouco não vai mais existir brigadeiro na padaria do seu Júlio! E se toda moça que atende em padarias fizer isso vão se acabar todos os brigadeiros do mundo porque todo mundo que faz brigadeiro vai falir!”
“Mas a menininha ficou feliz e eu não sei se ela vai dar brigadeiro pra todas as crianças porque pra mim ela não deu...”
“Tudo bem... Se você quiser pensar em felicidade, então, você tem que pensar na felicidade de todos os envolvidos!”
“A moça não ficou triste por dar o brigadeiro...”
“Mas e o seu Júlio? A padaria não é dele? Será que ele fica feliz quando tem prejuízo? E será que a mãe da menininha ficou feliz por ela ter comido um brigadeiro? Será que a mãe dela não deu o dinheiro suficiente só para o pão porque era melhor que a menininha não comesse brigadeiro?”
“Como eu vou saber, pai?”
“Viu só! Não é tão simples a ética...”
“Tá...”
“E o que você pensa agora?”
“Sobre o que?”
“Sobre isso que eu te expliquei!”
“Acho difícil...”
“Sobre a moça, filha, você pensa que foi certo ou errado ela dar o brigadeiro?”
“Não sei...”
“Como não sabe?”
“Eu não sei muito bem ética, pai...”
“Mas sobre a atitude da moça, o que você pensa agora?”
“O mesmo de antes...”
“Que foi certa, filha?”
“Que foi bonita, pai...”

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Obras literárias podem ser encaradas como artefatos epistêmicos?

Parece razoável acreditar que pelo menos algumas obras literárias nos permitem ter um entendimento melhor sobre nós mesmos. Isto pode sugerir que, através de obras literárias, podemos adquirir conhecimento acerca de nossa individualidade e até mesmo de nossa humanidade compartilhada. Creio que este fenômeno sugere duas alternativas: ou obras literárias são artefatos epistêmicos, i.e., artefatos cujo uso é fundamento do estatuto epistêmico positivo de que certas crenças desfrutam, ou obras literárias simplesmente habilitam aquilo que, por sua vez, fundamentará o estatuto epistêmico positivo de que certas crenças desfrutam.


Tendo em vista nos fazer compreender o que são artefatos epistêmicos, filósofos como Duncan Pritchard e Orestis Palermos (2016) adotam uma estratégia indutiva, no qual eles ilustram tal conceito mediante exemplos. Para nós, exemplos típicos de artefatos epistêmicos são listas de compras, calendários, telescópios, termômetros, relógios, microscópios, satélites, calculadoras etc. Uma vez que não há, nesta literatura, uma análise conceitual propriamente dita de ‘artefato epistêmico’, dou-me a liberdade de oferecer uma:

(AE) Um artefato x é um artefato epistêmico se, e somente se, x é um artefato do qual deriva o estatuto epistêmico positivo que ao menos uma crença p qualquer desfruta.

Tal análise explicita a presença de uma relação de fundamentação metafísica (metaphysical grounding) entre o uso de um artefato epistêmico e o estatuto epistêmico positivo desfrutado por uma crença resultante deste uso. O filósofo Jonathan Schaffer representa esta relação como “x\y”, o que significa que x é fundamento de y (cf. Schaffer 2009). Adaptando para o meu contexto, esta relação pode ser representada como “Ax\Np”, onde “Np” representa o estatuto normativo relevante para o conhecimento satisfeito por p, “Ax” o artefato do qual essa satisfação é derivada e “\” a relação de fundamentação presente entre Ax e Np. Assim, por exemplo, onde o artefato telescópio é o fundamento do estatuto epistêmico positivo da crença de que há crateras na Lua, poderíamos representar tal ocorrência como At\NcL. Formalidades, apenas.

Três concepções estruturalmente distintas da realidade, por J. Schaffer.

De acordo com AE, relógios, termômetros, calendários, listas de compras etc. são artefatos epistêmicos se, e somente se, são artefatos do qual o estatuto epistêmico positivo que ao menos uma crença p qualquer desfruta é derivado. Ora, a presente análise conceitual parece acomodar muito bem todos estes casos, mas dá ela espaço para que obras literárias sejam encaradas como artefatos epistêmicos? Se “não”, então deveríamos concluir que a presente análise conceitual é restritiva demais ou, pelo contrário, que é inapropriado tratar obras literárias como artefatos epistêmicos? Deixo ao leitor a possibilidade de levar esta discussão adiante.

Na minha próxima contribuição ao blog do GERMINA, pretendo explorar uma segunda alternativa, a saber, a de que obras literárias são artefatos que habilitam competências imaginativas, empáticas e conceituais que nos permitem adquirir um entendimento mais amplo sobre nós mesmos. Isto permitiria adotar uma solução negativa ao presente problema sem que, para isto, rejeitemos o contributo de obras literárias no que diz respeito ao enriquecimento de nosso contato cognitivo com o mundo.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Levando o cinema a sério

As últimas três décadas representam o que os filósofos do cinema chamam de renascença dos estudos fílmicos. O simples fato de se usar a expressão “filósofos do cinema” já é em si significativo. Apesar dos primeiros estudos sobre cinema terem sido desenvolvidos por filósofos a filosofia, de modo geral, negligenciou a jovem arte até o início dos anos 1980. No entanto, os mais importantes teóricos do cinema – André Bazin, Bela Balazs, Sergei Einsentein, Hugo Münsterberg, Rudolf Arnheim, Siegfried Kracauer, Edgar Morin mostraram desde o princípio a afinidade existente entre os estudos fílmicos e a filosofia. Estes teóricos desenvolveram reflexões filosóficas sobre ontologia do cinema, o filme como arte, a questão do realismo entre outras coisas.


Segundo Noël Carrol há duas razões para o tardio interesse da filosofia nos debates sobre cinema. A primeira diz respeito a uma questão histórica. Levaria algumas gerações até haver filósofos o suficiente os quais pudessem envolver-se com o assunto de forma a criar uma “massa crítica” em filosofia do cinema. A segunda está relacionada ao rumo que a teoria do cinema tomou depois dos anos 1980 quando voltou-se para uma abordagem culturalista deixando de lado seu caráter filosófico. Deste modo, a teoria do cinema deixou um vácuo intelectual que foi apenas agora preenchido pelos filósofos do cinema.
Hoje podemos dizer que a filosofia do cinema está consolidada como um importante subcampo da filosofia da arte. Os filósofos do cinema resgataram problemas tradicionais dos estudos fílmicos e postularam novas e intrigantes questões. Dispomos de uma grande produção intelectual sobre questões como: natureza do filme, autoria, narrativa, engajamento emocional, gêneros cinematográficos, etc. Porém a questão que tem gerado os debates mais intensos é a ideia do cinema como filosofia.
De acordo com os proponentes desta ideia alguns filmes são capazes de filosofar. Há diferentes abordagens quanto ao modo como os filmes poderiam “fazer” filosofia. Wartenberg, por exemplo, defende uma posição moderada sobre a questão dizendo que os filmes fazem filosofia na medida em que apresentam visualmente experimentos de pensamento. Mulhall, por outro lado, defende que o cinema mais do que ilustrar problemas de filosofia é capaz de refletir sobre uma ampla variedade de temas, sobre sua própria natureza e sobre seu próprio status enquanto ficção. 




Julian Baggini critica a posição de Mulhall afirmando que os filmes não são capazes de desenvolver argumentos para defender uma determinada ideia. Se por um lado a série Alien apresenta uma visão sobre como o mundo funciona, por outro, ela não explicita razões para defender que esta visão é acurada. Robert Sinnerbrink propõe uma postura diferente em relação a este problema. Ele defende uma posição não hierárquica da filosofia em relação ao cinema. Como que em um casamento ideal a filosofia e o cinema dialogariam cada um ao seu modo, mas em pé de igualdade.
O simples fato do cinema como forma arte deveria, na verdade, ser motivo suficiente para chamar a atenção da filosofia; mas os debates sobre a possibilidade de uma filosofia fílmica e suas diversas implicações sugere que é chegada a hora de levá-lo a sério.