Desde 1975 a Libertação Animal tem advogado em nome
daqueles que não falam a nossa língua filosófica dos direitos e dos deveres e
das responsabilidades. São seres humanos preocupados com outros seres
sencientes ou “sujeitos-de-uma-vida” – e preocupados com os seus próprios atos
e com suas próprias atitudes relativamente à comunidade de vida como um todo
(que de nós parece depender de maneira, cada vez mais, tragicamente) e à
comunidade humana (que traça do alto os seus juízos de valor sobre a
consciência e a consistência dos seus argumentos). Pontos de vista
inevitavelmente humanos acerca do que seja a animalidade e humanidade desta
relação que é também inevitável no compartilhamento de um mesmo mundo sem saída
e sem beira. Ninguém pergunta aos animais eles mesmos, porque a sua limitação
em nos responder e em defender a si mesmos em seus próprios nomes, já os exclui
de qualquer outra consideração mais parcimoniosa. Falta-nos, neste caso, a
humildade de um reconhecimento – quanto à nossa própria animalidade.
É claro que desde
Jeremy Bentham retiramos da racionalidade o foco da distinção e do critério
quanto à melhor maneira de se tratar os outros animais – “melhor” no sentido do
mais justo e mais igualitário, porque desde então o que conta não é saber se
eles podem pensar ou falar, mas se eles
podem sofrer. O critério utilitarista engendra assim necessariamente que se
coloque a todos os seres sencientes como passíveis de consideração moral: se o
princípio requer a maior felicidade (leia-se “prazer”) possível para o maior
número, se a correção de nossas ações é estabelecida com a realização máxima
desse princípio, e se as outras criaturas participam conosco desse mesmo
interesse, então nada justifica que se as faça sofrer em nosso próprio
benefício. Por este critério, não somos mais do que eles – por mais que
possamos expressar esta ideia em obras filosóficas, algo de que eles jamais
serão capazes. A realização de obras filosóficas não conta para o cálculo dos
benefícios da maximização da felicidade, a não ser quando surgem as bifurcações
alternativas dilemáticas – numa casa pegando fogo, salvar o filósofo em
detrimento de um cão é sempre preferível, mas não porque doa mais na pele do
filósofo, senão porque o cão não sabe pensar nada de verdadeiramente profundo;
um ser humano tem mais a perder em termos (do quê, realmente?) de conhecimento
e oportunidades do que um cão; o que sempre nos coloca numa encruzilhada quanto
aos mentalmente próximos de um cão, mas que ainda contam de alguma forma como humanos;
não só o fato de que parece haver mais a ser salvo num filósofo do que num
deficiente mental, mas no fato de que fica realmente difícil argumentar em prol
do salvamento de um débil mental em detrimento de um cão sem cair no enquadramento
da acusação especista.
É claro que não
nos deparamos cotidianamente com casas em chamas e que os dilemas morais estão
aí para se testar o alcance das teorias – e o quão longe se pode ir com os seus
argumentos filosóficos (para o bem e para o mal) – e que o movimento da “libertação animal” fez mais pelas criaturas não-humanas em um quarto de século
do que qualquer outra proposta anterior a seu favor. Ter posto de lado o
critério da racionalidade e reconhecido uma semelhança de interesses entre humanos
e não-humanos é um dos grandes méritos da corrente utilitarista.
Peter Singer é
sem dúvida o mais influente filósofo contemporâneo cujo trabalho tem
efetivamente “liberto” os outros animais de suas jaulas. Trata-se da noção de
“igual consideração de interesses”: do fato de que devemos reconhecer nas
criaturas a sua capacidade de sentir e de, portanto, ter interesses e,
finalmente, ter direitos (muito embora Singer não possua uma teoria dos
direitos e rejeite, como os demais utilitaristas clássicos antes dele, os
“direitos naturais”). É claro que o interesse principal é aqui o “interesse em
não sofrer” e em usufruir maximamente de sua “felicidade” (o que quer que isso
signifique para cada um). Em nossas considerações morais cotidianas, isso
implica numa atitude amplamente coerente que nos leva à necessidade do
vegetarianismo, da abolição da instrumentalização animal para diversão e
experimentação, entre outras medidas de implementação de bem-estar. Qualquer
favorecimento ao benefício e felicidade humana incorre puramente, nesses casos,
num preconceito baseado em “espécie” tanto quanto o racismo e o sexismo são
preconceitos baseados em raça e gênero.
Se são grandes os
ganhos para os outros animais – e se o seu bem-estar é assim de fato aumentado
inclusive em termos legais, institucionais e culturais (o que mostra as
vantagens pragmáticas do utilitarismo sobre outras teorias morais: nunca se
falou tanto em bem-estar animal, nunca antes o vegetarianismo teve tamanha
ênfase e endosso, nunca antes pareceu tão óbvio o horror do aprisionamento para
fins de mero entretenimento) – há uma miríade de questões que fica por ser
respondida pela teoria da igual consideração de interesses e pelo critério da
senciência: desde a aparente contradição envolvida em medidas de conservação
animal que são benéficas a longo prazo, e às vezes apenas para uma espécie como
um todo, mas que engendram o sofrimento de alguns indivíduos (a começar pela
castração ou tratamentos cirúrgicos), passando pelo fato de que mortes
indolores não pareceriam neste caso intrinsecamente más ou moralmente
condenáveis (nem mesmo para humanos inconscientes ou comatosos ou em situações
semelhantes), ou pelos absurdos gerados na atribuição de valor moral igual a
seres cognitivamente semelhantes mas que diferem em espécie, objeção à qual a
teoria apenas acrescenta mais um problema ao fazer distinções de tratamento por
“aproximação” ao humano; afinal, não me parece menos especista dizer que “seres
humanos normais possuem capacidades que excedem largamente aquelas dos animais
não-humanos, e algumas dessas capacidades são moralmente significativas em
contextos particulares” – teríamos tanto mais a perder! (Singer 1999, p.87).*
Isto me parece
apenas ainda um procedimento que tanta resolver as coisas em termos de
semelhança enquanto autoriza diferenças de tratamento; dito de outro modo,
ainda uma recomendação de respeito por “aproximação”, e não na consideração da
própria diferença. Ou deveríamos respeitar a dignidade das mulheres porque elas
de fato não diferem tanto assim dos homens? Nem os negros tanto assim dos
brancos?
*Singer, P. In: Coetzee, J.M. The Lives of Animals. Gutman, A. (ed.). Princeton University Press, 1999, p.85-91.
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