sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

A animalidade de nossa humanidade – parte 1



Desde 1975 a Libertação Animal tem advogado em nome daqueles que não falam a nossa língua filosófica dos direitos e dos deveres e das responsabilidades. São seres humanos preocupados com outros seres sencientes ou “sujeitos-de-uma-vida” – e preocupados com os seus próprios atos e com suas próprias atitudes relativamente à comunidade de vida como um todo (que de nós parece depender de maneira, cada vez mais, tragicamente) e à comunidade humana (que traça do alto os seus juízos de valor sobre a consciência e a consistência dos seus argumentos). Pontos de vista inevitavelmente humanos acerca do que seja a animalidade e humanidade desta relação que é também inevitável no compartilhamento de um mesmo mundo sem saída e sem beira. Ninguém pergunta aos animais eles mesmos, porque a sua limitação em nos responder e em defender a si mesmos em seus próprios nomes, já os exclui de qualquer outra consideração mais parcimoniosa. Falta-nos, neste caso, a humildade de um reconhecimento – quanto à nossa própria animalidade.
É claro que desde Jeremy Bentham retiramos da racionalidade o foco da distinção e do critério quanto à melhor maneira de se tratar os outros animais – “melhor” no sentido do mais justo e mais igualitário, porque desde então o que conta não é saber se eles podem pensar ou falar, mas se eles podem sofrer. O critério utilitarista engendra assim necessariamente que se coloque a todos os seres sencientes como passíveis de consideração moral: se o princípio requer a maior felicidade (leia-se “prazer”) possível para o maior número, se a correção de nossas ações é estabelecida com a realização máxima desse princípio, e se as outras criaturas participam conosco desse mesmo interesse, então nada justifica que se as faça sofrer em nosso próprio benefício. Por este critério, não somos mais do que eles – por mais que possamos expressar esta ideia em obras filosóficas, algo de que eles jamais serão capazes. A realização de obras filosóficas não conta para o cálculo dos benefícios da maximização da felicidade, a não ser quando surgem as bifurcações alternativas dilemáticas – numa casa pegando fogo, salvar o filósofo em detrimento de um cão é sempre preferível, mas não porque doa mais na pele do filósofo, senão porque o cão não sabe pensar nada de verdadeiramente profundo; um ser humano tem mais a perder em termos (do quê, realmente?) de conhecimento e oportunidades do que um cão; o que sempre nos coloca numa encruzilhada quanto aos mentalmente próximos de um cão, mas que ainda contam de alguma forma como humanos; não só o fato de que parece haver mais a ser salvo num filósofo do que num deficiente mental, mas no fato de que fica realmente difícil argumentar em prol do salvamento de um débil mental em detrimento de um cão sem cair no enquadramento da acusação especista.
É claro que não nos deparamos cotidianamente com casas em chamas e que os dilemas morais estão aí para se testar o alcance das teorias – e o quão longe se pode ir com os seus argumentos filosóficos (para o bem e para o mal) – e que o movimento da “libertação animal” fez mais pelas criaturas não-humanas em um quarto de século do que qualquer outra proposta anterior a seu favor. Ter posto de lado o critério da racionalidade e reconhecido uma semelhança de interesses entre humanos e não-humanos é um dos grandes méritos da corrente utilitarista.
Peter Singer é sem dúvida o mais influente filósofo contemporâneo cujo trabalho tem efetivamente “liberto” os outros animais de suas jaulas. Trata-se da noção de “igual consideração de interesses”: do fato de que devemos reconhecer nas criaturas a sua capacidade de sentir e de, portanto, ter interesses e, finalmente, ter direitos (muito embora Singer não possua uma teoria dos direitos e rejeite, como os demais utilitaristas clássicos antes dele, os “direitos naturais”). É claro que o interesse principal é aqui o “interesse em não sofrer” e em usufruir maximamente de sua “felicidade” (o que quer que isso signifique para cada um). Em nossas considerações morais cotidianas, isso implica numa atitude amplamente coerente que nos leva à necessidade do vegetarianismo, da abolição da instrumentalização animal para diversão e experimentação, entre outras medidas de implementação de bem-estar. Qualquer favorecimento ao benefício e felicidade humana incorre puramente, nesses casos, num preconceito baseado em “espécie” tanto quanto o racismo e o sexismo são preconceitos baseados em raça e gênero.
Se são grandes os ganhos para os outros animais – e se o seu bem-estar é assim de fato aumentado inclusive em termos legais, institucionais e culturais (o que mostra as vantagens pragmáticas do utilitarismo sobre outras teorias morais: nunca se falou tanto em bem-estar animal, nunca antes o vegetarianismo teve tamanha ênfase e endosso, nunca antes pareceu tão óbvio o horror do aprisionamento para fins de mero entretenimento) – há uma miríade de questões que fica por ser respondida pela teoria da igual consideração de interesses e pelo critério da senciência: desde a aparente contradição envolvida em medidas de conservação animal que são benéficas a longo prazo, e às vezes apenas para uma espécie como um todo, mas que engendram o sofrimento de alguns indivíduos (a começar pela castração ou tratamentos cirúrgicos), passando pelo fato de que mortes indolores não pareceriam neste caso intrinsecamente más ou moralmente condenáveis (nem mesmo para humanos inconscientes ou comatosos ou em situações semelhantes), ou pelos absurdos gerados na atribuição de valor moral igual a seres cognitivamente semelhantes mas que diferem em espécie, objeção à qual a teoria apenas acrescenta mais um problema ao fazer distinções de tratamento por “aproximação” ao humano; afinal, não me parece menos especista dizer que “seres humanos normais possuem capacidades que excedem largamente aquelas dos animais não-humanos, e algumas dessas capacidades são moralmente significativas em contextos particulares” – teríamos tanto mais a perder! (Singer 1999, p.87).*
Isto me parece apenas ainda um procedimento que tanta resolver as coisas em termos de semelhança enquanto autoriza diferenças de tratamento; dito de outro modo, ainda uma recomendação de respeito por “aproximação”, e não na consideração da própria diferença. Ou deveríamos respeitar a dignidade das mulheres porque elas de fato não diferem tanto assim dos homens? Nem os negros tanto assim dos brancos?

*Singer, P. In: Coetzee, J.M. The Lives of Animals. Gutman, A. (ed.). Princeton University Press, 1999, p.85-91.

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