sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Levando o cinema a sério

As últimas três décadas representam o que os filósofos do cinema chamam de renascença dos estudos fílmicos. O simples fato de se usar a expressão “filósofos do cinema” já é em si significativo. Apesar dos primeiros estudos sobre cinema terem sido desenvolvidos por filósofos a filosofia, de modo geral, negligenciou a jovem arte até o início dos anos 1980. No entanto, os mais importantes teóricos do cinema – André Bazin, Bela Balazs, Sergei Einsentein, Hugo Münsterberg, Rudolf Arnheim, Siegfried Kracauer, Edgar Morin mostraram desde o princípio a afinidade existente entre os estudos fílmicos e a filosofia. Estes teóricos desenvolveram reflexões filosóficas sobre ontologia do cinema, o filme como arte, a questão do realismo entre outras coisas.


Segundo Noël Carrol há duas razões para o tardio interesse da filosofia nos debates sobre cinema. A primeira diz respeito a uma questão histórica. Levaria algumas gerações até haver filósofos o suficiente os quais pudessem envolver-se com o assunto de forma a criar uma “massa crítica” em filosofia do cinema. A segunda está relacionada ao rumo que a teoria do cinema tomou depois dos anos 1980 quando voltou-se para uma abordagem culturalista deixando de lado seu caráter filosófico. Deste modo, a teoria do cinema deixou um vácuo intelectual que foi apenas agora preenchido pelos filósofos do cinema.
Hoje podemos dizer que a filosofia do cinema está consolidada como um importante subcampo da filosofia da arte. Os filósofos do cinema resgataram problemas tradicionais dos estudos fílmicos e postularam novas e intrigantes questões. Dispomos de uma grande produção intelectual sobre questões como: natureza do filme, autoria, narrativa, engajamento emocional, gêneros cinematográficos, etc. Porém a questão que tem gerado os debates mais intensos é a ideia do cinema como filosofia.
De acordo com os proponentes desta ideia alguns filmes são capazes de filosofar. Há diferentes abordagens quanto ao modo como os filmes poderiam “fazer” filosofia. Wartenberg, por exemplo, defende uma posição moderada sobre a questão dizendo que os filmes fazem filosofia na medida em que apresentam visualmente experimentos de pensamento. Mulhall, por outro lado, defende que o cinema mais do que ilustrar problemas de filosofia é capaz de refletir sobre uma ampla variedade de temas, sobre sua própria natureza e sobre seu próprio status enquanto ficção. 




Julian Baggini critica a posição de Mulhall afirmando que os filmes não são capazes de desenvolver argumentos para defender uma determinada ideia. Se por um lado a série Alien apresenta uma visão sobre como o mundo funciona, por outro, ela não explicita razões para defender que esta visão é acurada. Robert Sinnerbrink propõe uma postura diferente em relação a este problema. Ele defende uma posição não hierárquica da filosofia em relação ao cinema. Como que em um casamento ideal a filosofia e o cinema dialogariam cada um ao seu modo, mas em pé de igualdade.
O simples fato do cinema como forma arte deveria, na verdade, ser motivo suficiente para chamar a atenção da filosofia; mas os debates sobre a possibilidade de uma filosofia fílmica e suas diversas implicações sugere que é chegada a hora de levá-lo a sério.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Incertezas sobre filosofia, moral e literatura


A discussão sobre a relevância moral das narrativas literárias é controversa. Há quem desencoraje em absoluto o ingresso da ética no terreno da arte; há quem encoraje o interesse moral em algumas obras literárias. Ambos têm boas razões para tal. Ainda somos assombrados pelo fantasma do índex, que sussurra novos critérios para as listas de livros proibidos. Faríamos bem em ouvi-lo com cuidado. Ao mesmo tempo, somos motivados pelas nossas experiências compartilhadas enquanto leitores que tropeçam em saliências morais ao longo de seus passeios pela ficção. Não podemos ignorá-las tampouco.

Com cuidado, hesitantes, nós podemos endossar o fato de que literatura à sua maneira pode nos dizer algo sobre o modo como devemos viver. Mas por que hesitar? Para que não reduzamos todas as obras literárias a fábulas que sintetizam uma lição de vida. Uma parte considerável dos textos literários oferece o seu melhor, justamente, ao apresentar tramas de interesse humano em sua variedade e abertura. Esses textos instigam reflexões morais a partir das incertezas que geram em nós. Eles provocam os nossos juízos e as nossas concepções mais sólidas ao oferecerem complexidade. Por exemplo: um personagem tão execrável no início do livro torna-se mais compreensível ao conhecermos a profundidade da sua história; um personagem, antes definido como bondoso, passa a ter as suas intenções questionadas ao longo do texto e isso põe em dúvida a sua definição. A partir da experiência de leitura, essas percepções trazidas por essas obras nos mostram a insuficiência e os riscos dos estereótipos. Podemos assumir, assim como Martha Nussbaum em Love's Knowledge (LK), que as particularidades expressas nas narrativas literárias desconcertam generalizações pomposas.


Sobre a relevância moral da literatura há uma questão importante a ser confrontada. Será que a literatura só é relevante moralmente na condição de fonte para a extração de normas? É importante notarmos que uma resposta positiva a essa questão não garante a contribuição sui generis da literatura ou de qualquer narrativa artística; porque, uma vez extraídas as normas,  todo o “resto” peculiar à literatura poderia ser abandonado. Esse “resto” corresponde à própria forma artística e à estrutura narrativa que conecta os particulares. Nussbaum em LK nos ajuda a perceber que a forma não apenas reveste os conteúdos do texto, mas também declara algo por si. Por exemplo, um texto escrito de maneira detalhada diz que detalhes são importantes. Então, como podemos defender a relevância moral sui generis da literatura? Nussbaum opta pela defesa de uma concepção normativa mais flexível, sensível à forma artística, a partir de uma matriz aristotélica – o que não evita o seu quinhão de controvérsia. Há um espaço para desconfianças razoáveis em torno da consonância, atribuída por Nussbaum, entre o trabalho de grandes novelistas – Henry James e Proust, especialmente – e a posição ética de Aristóteles.


Para essa discussão sobre a literatura, pode ser interessante importarmos uma perspicácia da tradição estética japonesa – destacada por Donald Richie em A Tractate on Japanese Aesthetics. Por esse viés oriental, somos instruídos a apreciar a arte por seus mistérios e suas sugestões mais do que pelas suas respostas. Talvez, essa perspectiva poderia inspirar uma postura menos abrasiva em relação à arte.

Talvez, a literatura não nos dê respostas definidas e definitivas para problemas morais, mas sugestões mais ou menos intensas que orientam a nossa percepção para tais questões. O que antes parecia uniforme passa a exibir nuances. Passamos a enxergar os mesmos desafios de uma maneira diferente, mais sensível e atenta às particularidades. Talvez seja isso o que torna a literatura moralmente relevante.



segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Apresentação


O GERMINA – Grupo de estudos em reflexão moral interdisciplinar e narratividade – surgiu espontaneamente da afinidade de uma mesma premência compartilhada: pensar o estatuto da moralidade desde uma perspectiva plural e muito mais porosa do que a perspectiva de uma “filosofia moral tradicional”. É, num certo sentido, uma reflexão que se quer “metaética”, mas apenas porque sua indagação de fundo é aquela do significado da própria moralidade. E é uma reflexão eminentemente interdisciplinar ao propor uma conversa com áreas que contemplam igualmente aquele significado: artes, cinema, literatura, quadrinhos, cultura, sociologia e história – pra começar. E, finalmente, é uma reflexão que toma como ponto de partida o privilégio da narratividade sobre a mera norma. Dito em outros termos: trata-se de pensar o papel (ou os papéis possíveis) da narrativa na construção, de novo, daquele mesmo significado.
As conversas propostas neste espaço vão tocar num ou noutro ponto da tríade acima exposta. Desde uma concepção wittgensteiniana de gramática filosófica, tais reflexões comporão fios de uma mesma teia, a qual, ao final, talvez nos forneça uma ou outra imagem de nossas ideias em andamento. O objetivo central, mais do que estabelecer teorias, fornecer definições ou tentar um sistema ético, é buscar caminhos alternativos, múltiplos talvez, interdisciplinares e transdisciplinares certamente, que superem aquilo que tenho chamado de clausura da norma. Daí uma “filosofia moral normativa” estar fora de questão – e mesmo que se faça necessário, em algum ponto, pensar em algum tipo de “prescritividade” ou “orientação”, ela talvez só seja realmente possível depois de uma profunda revisão – ou de um reinventar – do vocabulário filosófico. Ou, pelo menos, depois do resgate de certos termos e conceitos sequestrados pela tradição estabelecida. Um resgate de significados que também já não se deixa sufocar por uma suposta primazia de um saber filosófico insular.
Os colaboradores do grupo e do blog compartilham, assim, de uma reflexão que se quer plural, complexa, aberta, crítica, e desconfiada das fronteiras intransponíveis dadas com e por palavras rígidas, e desconfiada das verdades que não se questionam mais em seu engessamento.
São conversas, portanto, de fato. Abertas aos vários caminhos ainda por trilhar.