quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

É possível entrar na Lei?

Nesta semana concluí minhas últimas tarefas enquanto graduanda em Direito. Em um mês colarei grau e receberei o diploma de bacharel. Acho que por esse motivo venho me perguntando e refletindo acerca do acesso à justiça e dos vários problemas enfrentados por quem consegue acessá-la – poucos. Morosidade, altas despesas, falta de orientação sobre o que fazer e, ainda, por incrível que pareça, falta de conhecimento acerca da sua demanda e da situação a qual se encontra. A maioria das pessoas que consegue acessar a “justiça” (diga-se de passagem, levar seu pedido ao conhecimento de um juiz ou até mesmo ter acesso a outros meios de resolução de conflitos ou prevenção destes) não sabe o que estão fazendo com o seu pedido de alimentos (pensão alimentícia), com seu pedido de remédios, leito em um hospital ou o que acontece com a pessoa a qual a agrediu, estuprou, furtou. Nem mesmo aqueles que são acusados de algum delito muitas vezes sabem o porquê ou, quiçá, sabiam que determinadas ações poderiam configurar um crime ou resultar em dever de pagar indenização a quem sofreu o dano, por exemplo.
Então eu fico pensando: Como pode ser naturalizado uma pessoa ser punida por algo que ela não sabia que era crime? Como pode alguém não saber o que está acontecendo com o pedido que fez “a um juiz”? E, como pode ser tão difícil acessar a justiça? E por que muitas pessoas, sequer, conseguem esse acesso? Será que quero fazer parte desse círculo vicioso onde só quem tem uma vida “mais justa” consegue o acesso à justiça? As pessoas pouco sabem a respeito de seus direitos e deveres. Desconhecem as leis e são exploradas por isso. Afinal, é a ignorância que produz o latifúndio.
Essas coisas me lembram histórias de Kafka, principalmente o conto Diante da Lei. Demorei um tempo para ter a compreensão que hoje tenho deste texto. Acho que podemos interpretá-lo de diversas formas, dependendo de como anda nossa vida no momento da leitura. É um texto curto, e por isso cabe trazer alguns recortes para cá:

Há um guardião diante da Lei. Um homem do campo vem até esse guardião pedindo para ser admitido na Lei. O guardião lhe responde que naquele dia não pode permitir sua entrada. O homem reflete e pergunta se depois poderá entrar.
– É possível – diz o guardião -, mas agora não.
Como a porta da Lei continua aberta e o guardião está ao lado dela, o homem se agacha para espiar. O guardião ri e diz:
- Preste bem atenção: sou muito forte. E sou o guardião mais subalterno. Lá dentro não há uma sala que não esteja vigiada por um guardião, cada um mais forte que o anterior. O terceiro tem uma aparência que eu mesmo não consigo suportar.
O homem não previa esses entraves. Pensa que a Lei deve ser acessível, [...]




              O guardião então alcança um banco para o homem do campo. Este, por sua vez, fica anos e anos esperando. Não mais se preocupava com os próximos guardiões, pois a impressão que tinha era a de que aquele era o único obstáculo par entrar na Lei. Às vezes, espiava entre a porta, mas não arriscava desobedecê-lo. Depois de um tempo:

– O que você quer agora? – diz o guardião. – Você é insaciável.
– Todos buscam a Lei – diz o homem. – Será possível que em todos esses anos que fiquei esperando ninguém tenha tentado entrar, além de mim?
O guardião percebe que o homem está se acabando e tem de gritar para que ele ouça:
- Ninguém quis entrar por aqui porque esta porta estava destinada somente a 
 você. Agora vou fechá-la.



Diante do modelo positivista, racionalista, individualista, capitalista (etc.) no qual está inserida a sociedade atual e, por consequência, o Direito, entrar na Lei é desejo de muitos e realização de poucos. A nossa Constituição Federal de 1988 – a legislação mais importante, que rege todas as demais – trouxe consigo a cara de “Estado Democrático de Direito” e vários outros nomes que nos levam a entender que, agora sim, nosso país "pensaria" nos direitos sociais, na igualdade, na saúde, na justiça e no acesso a justiça por todos. Apesar dessa constituição não ter nem 30 anos (pouco tempo para se consolidar) percebo que quase nada do que foi “prometido” nela acontece.
Segundo esta constituição, deveríamos pensar que o Direito teria de ser a última alternativa para alguém buscar seus direitos e garantias constitucionais. Porém, com esse modelo de Estado que temos – e que vamos ter por um bom tempo, basta analisar o Projeto de Emenda Constitucional 55/241 que tramita no Senado – a via judicial se mostra a única alternativa para muitas pessoas. Só que, apesar disso, muitas dessas pessoas não conseguem acessá-la.
Segundo a obra de Kafka, “O homem não previa esses entraves. Pensa que a Lei deve ser acessível”. Deveria. Mas não é! Se considerarmos que "entrar na Lei" é o acesso à justiça (uma garantia constitucional), definitivamente, essa tarefa não é tão fácil quanto aparenta. Pessoas de baixa renda não têm dinheiro para pagar os honorários de uma advogada, ou não têm dinheiro para pagar a passagem e ir até uma Defensoria Pública ou assistência judiciária gratuita fornecida pelas universidades. Pessoas do campo não sabem onde ficam as delegacias da cidade, não sabem o que fazer para constituir advogado, não sabem que precisam pagar seus impostos, não sabem que o crime de adultério não existe mais e perseguir e matar uma mulher pelo fato dela ser mulher é feminicídio, configurando crime hediondo no Brasil. 
Esse acesso à justiça não necessariamente será um acesso ao fórum, ou ter um processo tramitando. Se pensarmos que a função Direito também pode ser entendida a partir da concepção de uma jurisdição sustentável, ou seja, que passe pelo crivo das garantias constitucionais prevenindo e evitando conflitos maiores, integrando sociedade e meio ambiente, protegendo os povos tradicionais, evitando o abarrotamento do Poder Judiciário e fazendo o uso de outras formas de resolução de conflitos como a mediação, por exemplo, isso também seria uma forma de acesso à justiça, de "entrar" na Lei.
Se acessar a Lei não é possível para todos, alguma coisa há de ser feita. Minha aposta é na educação popular. É preciso sair da bolha acadêmica e ir para as comunidades, para o campo, para os assentamentos, para as escolas e falar sobre nossos direitos, sobre cidadania, sobre feminismo, sobre responsabilidade, sobre direitos trabalhistas, sobre ocupação, sobre greve. É preciso falar sobre a realidade das pessoas e não ficarmos criando teorias para problemas sociais sem saber a realidade de quem está inserido e sofrendo diretamente com esses problemas. Talvez assim fosse possível enfrentar todos os guardiões e entrar na Lei. 


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