Falávamos
anteriormente das críticas ao utilitarismo e da problemática centralidade dos
conceitos de dor, prazer e bem-estar aí envolvidos. No entanto, a teoria mais
kantiana em prol dos direitos dos animais, tal como advogada por Tom Regan, não
se sai muito melhor e não evita algumas das mesmas objeções.
É verdade que a
noção de “sujeito-de-uma-vida”, a qual atribui um valor inerente a qualquer
criatura que experimente ser um tal sujeito, implica a consideração de um
respeito (kantiano) como fim em si mesmo – ou ao menos o respeito de não ser
tratado como mero meio, na esteira de uma atribuição de “direito”. Ser o
“sujeito-de-uma-vida” é ter uma vida que importa para este sujeito
independentemente de ela importar para qualquer outro. E isso por si só garante
o direito a esta vida de não sofrer danos. Mas as condições suficientes
elencadas por Regan para constituir este valor inerente a uma vida são ainda
muito próximas das condições que conferem a nós a nossa própria humanidade: ter
percepções sensíveis, crenças, desejos, motivos e memória. Mas até onde devemos
ir, afinal, na questão do respeito e na atribuição dos direitos? Ultrapassado o
limiar destas condições, já não temos deveres de respeito e de consideração?
Ainda fica a pergunta: por que uns e não outros? Será este mesmo o critério
decisivo? E se ele excluir algo que na verdade não deveria excluir –
simplesmente porque são condições demasiadamente humanas? Além disso, persiste
aqui ainda a autorização de um critério decisional por aproximação quando se
trata da morte, por exemplo: a perda engendrada pela morte de um animal não é
equivalente à perda engendrada pela morte de um ser humano. Regan o justifica
em termos de oportunidades – o que o leva ao argumento contraintuitivo segundo
o qual há mais dano na morte de um cão normal e saudável do que na morte de um
ser humano em coma irreversível. O cão normal e saudável, ao viver sua vida,
teria mais oportunidades de satisfação do que este ser humano – e isto parece
correto, mas apenas de um ponto de vista pragmático, porque algo fica ainda por
ser explicado no fato de que lamentamos enormemente mais a morte de um ser
humano em coma irreversível do que a morte de um cão saudável (por mais que o
possamos lamentar também, e por muito tempo). E não se trata somente de um
lamento pela perda de um valor inerente à pessoa enquanto fim em si. Mas de um
valor que apenas a vida humana possui, independentemente do quanto ainda
poderia ou não fruir de suas oportunidades e capacidades.
Nenhuma destas
abordagens dá conta do fato desta incomensurabilidade. Nenhuma explica
realmente, como o diria Diamond, porque não nos comemos uns aos outros quando
morremos.
Por outro lado,
nenhuma destas abordagens consegue realmente ultrapassar a imposição de um
critério de distinção que, em algum ponto, torna-se meramente arbitrário – ou,
inclusive, e em seus próprios termos, especista. Apesar de todas as boas
intenções, quando em condições iguais se trata de decidir quem deve viver, os
seres humanos acabam sempre em melhor posição. E quando em condições desiguais
se trata de decidir quem leva a sorte, é sempre a melhor cognição ou a melhor
capacidade de fruição da própria vida.
Há algo de muito
estranho em teorias que fazem a defesa dos animais nos termos de sua maior ou
menor proximidade com os seres humanos.
Se a questão é o
animal, talvez devêssemos parar de nos perguntar o que eles têm em comum
conosco.
Mas se a questão
é também a nossa própria animalidade, – reconhecendo-a e compartilhando-a com
os outros animais – talvez devêssemos também aceitar sem acusação especista o
fato de que não comemos nossos mortos, de que os enterramos de um certo jeito,
de os lamentamos diferentemente, e de que sua vida é diferente aos nossos olhos
simplesmente porque é humana. Algo
assim não precisa – e não deve – engendrar um tratamento desumano dos outros animais. Uma conclusão não precisa – e não deve
– seguir-se da outra: admitir a nossa diferença não significa admitir a nossa
suposta superioridade nem qualquer requerimento de tratamento especial ou melhor
ou mais utilitário.
As questões de
uma “ética animal” talvez tenham alcançado um patamar de benefícios
irrecusáveis, mas as suas reflexões parecem ainda depender de um ponto de vista
preconceituoso ou tendencioso – ou, ao menos, menos aberto às verdadeiras
complexidades aí envolvidas. Como sugere Raimond Gaita: falta ver as coisas
como elas são. E para nós, humanos, elas não são sempre decidíveis por
princípios sim e não, e não são sempre facilmente desligadas de nossa concepção
de nós mesmos, seja em nossa animalidade seja em nossa humanidade.
Fica por fazer
uma reflexão que explique porque nos é mais fácil falar em “acabar com a
miséria” de um gato – quando não diríamos isso da mesma maneira de um ser
humano em fase terminal numa cama de hospital. Que explique porque a morte de
um gato, por dolorosa que seja, não perdura como perda da mesma maneira como
ela perdura quando quem morre é um ser humano próximo. E porque faz sentido a
cerimônia de adeus ao ser humano, mas não a mesma cerimônia de adeus a um cão –
por mais que possamos querer que o seu corpo não seja tratado indignamente, e
por mais que possamos querer respeitar a dignidade dos corpos da maioria dos
seres vivos (é indigno que se atropele um animal silvestre dezenas e dezenas de
vezes, como é indigno colocar animais de estimação no saco de lixo – indigno
para eles e a vida que puderam ter tido). Mas por que isso é moralmente
condenável, mas não criminalmente punível? Não é um tratamento igual no que se
refere aos seres humanos.
Fica por fazer
uma reflexão que explique, igualmente, nossas relações cotidianas com os outros
animais. Não apenas a maneira como procedem bem ou mal os abatedouros, os
circos, ou os rodeios, mas a maneira como convivemos com gatos, cachorros,
vacas, galinhas e animais silvestres. Não nos cabe interferir na predação –
como alegam alguns de maneira completamente irresponsável num meio acadêmico que
não deveria se calar a este respeito, – mas com certeza nos cabe refletir sobre
o modo como tratamos os animais que comemos e se os devemos mesmo comer. Mas o
que isso significa, também, cotidianamente, para nós? O que são vacas e
cachorros e gatos para nós? Podemos muitas vezes ser amigos desses animais – e
de maneira muito intensa, muito verdadeira – mas os teríamos na mesma conta dos
nossos amigos humanos?
As coisas tais
como elas são, são muito mais nuançadas e complexas do que o supõem as teorias
que pretendem regular nossas atitudes e comportamentos.
J.M. Coetzee, em
seu livro Desonra, reflete sobre o
modo como podemos nos comparar aos animais quando caímos em estado de desgraça.
A filha de David Lurie, violentada e para sempre vulnerável em sua condição de
mulher habitando sozinha uma fazenda da África do Sul, responde que cumpre
agora começar tudo de novo, do zero. Mas do zero, e mais nada. Como um cão, diz
Lurie. Sim, como um cão, diz Lucy, quando tudo o que resta de sua própria
humanidade é esta animalidade nua, pronta para sofrer outras violências, e
aberta a que tudo seja sempre repetido. Talvez isto tenhamos de fato em comum
com os outros animais, o fato de que somos todos vulneráveis – por mais que a
filosofia faça parecer diferente e não se ocupe quase nunca desse assunto; nós,
como eles, somos vulneráveis e estamos sempre aí na eminência da queda, tanto
da desgraça e da desonra, quanto da morte. Este pode ser o traço comum que não
nos permita olhar no olho de um animal quando o matamos – ou quando um soldado
se recusa a atirar num inimigo com as calças nas mãos. E este pode então ser o traço comum que nos
impeça justamente de fazer-lhes o mal. Mas nós podemos pensar a respeito, e
eles não. E isso nos dá uma vantagem – e uma responsabilidade.
Enquanto as
reflexões de uma “ética animal” não derem conta destas questões, estaremos
ainda longe de explicar porque para tanta gente a analogia dos abatedouros com
o holocausto é tão repugnante. E porque ainda assim, há os que continuam a
insistir nela.