sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A Pequena Sombra

Já era noite, quando o solitário morador da Rua das Flores tentava ultrapassar a porta da sua residência. Em suas mãos, a chave parecia um objeto de outro mundo; aos seus olhos, a fechadura parecia um obstáculo intransponível. A sua perseverança, no entanto, o levou a dominar aquela estranha tecnologia e, enfim, entrar em casa. Imediatamente, a mão pôs-se a alcançar o interruptor. Mesmo automático, esse movimento não foi preciso. O indicador tocou algumas vezes na parede antes de encontrar o seu destino. A luz não se acendeu. O ventilador de teto não ligou.

Fechou a porta sem chaveá-la. Era perseverante, mas não tanto assim, a ponto de reviver o mesmo desafio mais uma vez. Largou a chave na mesa e ficou parado, imobilizado pela circunstância embaraçosa. Lembrou-se que guardava velas na gaveta da escrivaninha. Começou a tatear as paredes. Os pés seguiram vacilantes à sua iniciativa, como se temessem cair em algum buraco no meio da sala. Após uma série de movimentos – provavelmente – jocosos, bateu-se contra a familiar quina da escrivaninha. Digo “provavelmente” porque estava escuro demais para se afirmar com certeza sobre a jocosidade daqueles movimentos. Enfim, agora estava perto da gaveta e era isso que importava. Tateou mais um pouco e abriu a gaveta. Com os olhos mais acostumados à escuridão, não demorou a encontrar a vela e o isqueiro.

Surpreendentemente, conseguiu acender a vela com facilidade e logo a pôs sobre a mesa. Sentou-se na cadeira diante da escrivaninha e ficou a observar o fogo enquanto regurgitava algumas lembranças recentes. Estava satisfeito com aquele dia. No trabalho, conversara com o chefe sobre a frequência de atrasos e a falta de produtividade do seu colega de repartição e sobre como isso era absurdo e desonesto. Mas afinal, por que diabos ele precisava conviver com aquela situação? Que esse parasita fosse parasitar em outra vizinhança! No fim das contas, o chefe foi implacável e tratou de encaminhar o infeliz para o olho da rua. Como essa sensação de dever cumprido o agradava. Parou de relembrar, porém sem desviar o olhar do fogo.

Sentiu-se inspirado e decidiu reviver um antigo hábito da juventude: escrever poeminhas. Retirou um retalho e um lápis da mesma gaveta que retirara a vela. Observou a chama inquieta e a maravilha das sombras projetadas ao seu redor. Seria um poeminha sobre aquela cena. Uma tentativa de sintetizar aquele momento em palavras. Estava enferrujado, mas a inspiração tem o seu efeito revigorante. Escreveu e riscou até ficar contente com o resultado. Leu em voz alta: No balanço da chama / a primeira dança / da pequena sombra. Fechou os olhos brevemente e sorriu sem mostrar os dentes. Ao abri-los, uma situação estranha aconteceu.

Uma pequena sombra em forma humana surgiu em pé sobre a superfície da escrivaninha. Antes que pudesse demonstrar o seu espanto, a sombra perguntou:
– Então, você está satisfeito com seu dia, não é?
Sem saber bem o porquê, respondeu à sombra como se falasse com outra pessoa qualquer.
– Sim, posso dizer que foi um dia bastante satisfatório. Finalmente, eu tive uma conversa com o meu chefe sobre o meu colega relapso e ele tomou medidas drásticas. O infeliz agora não trabalha mais lá.
A sombrinha falou de maneira provocativa:
– O mesmo colega que lhe emprestou aquele dinheiro dois anos atrás? Que está com o filho com aquela doença grave? Que o imóvel corre o risco de ser confiscado?
Ele respondeu sem jeito:
– Eu já paguei o empréstimo... Se ele sabia que estava numa situação delicada, ele deveria ter se comprometido mais com o trabalho. Regras são regras. Ele deveria ter chegado no horário e cumprido a quota de produção.
A interlocutora inconveniente continuou as suas provocações:
– E se o motivo dele não se comprometer seja exatamente a sua situação delicada? Ele se atrasava tanto assim? Dois anos atrás, não era você quem deixava a desejar no trabalho?

O morador da Rua das Flores queria dizer “Mas é diferente...”, entretanto não disse nada. Um gosto amargo ficou em sua boca, talvez porque esse fosse o sabor de suas palavras não ditas. Já não estava tão satisfeito com o seu dia. Talvez, amanhã fosse falar novamente com o chefe e admitir que se enganara, mas pensou que as coisas não eram tão simples assim. Ele poderia ficar sem emprego também. Não havia garantias. O medo era maior do que o desejo de redenção. Talvez, ele poderia ligar para o seu colega – ex-colega, ex-amigo –, dizer que sentia muito e oferecer um empréstimo. Decidiu que não ligar seria melhor para ambos. O pobre infeliz não aguentaria uma vergonha dessas. Animou-se com a sua sagacidade de pensamento, fechou os olhos e respirou fundo aliviado. Quando abriu os olhos, a pequena sombra já não estava mais lá.  

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