Já era noite, quando o solitário morador da Rua das Flores tentava
ultrapassar a porta da sua residência. Em suas mãos, a chave
parecia um objeto de outro mundo; aos seus olhos, a fechadura parecia
um obstáculo intransponível. A sua perseverança, no entanto, o
levou a dominar aquela estranha tecnologia e, enfim, entrar em casa.
Imediatamente, a mão pôs-se a alcançar o interruptor. Mesmo
automático, esse movimento não foi preciso. O indicador tocou
algumas vezes na parede antes de encontrar o seu destino. A luz não
se acendeu. O ventilador de teto não ligou.
Fechou a porta sem chaveá-la. Era perseverante, mas não tanto
assim, a ponto de reviver o mesmo desafio mais uma vez. Largou a
chave na mesa e ficou parado, imobilizado pela circunstância
embaraçosa. Lembrou-se que guardava velas na gaveta da escrivaninha.
Começou a tatear as paredes. Os pés seguiram vacilantes à sua
iniciativa, como se temessem cair em algum buraco no meio da sala.
Após uma série de movimentos – provavelmente – jocosos,
bateu-se contra a familiar quina da escrivaninha. Digo
“provavelmente” porque estava escuro demais para se afirmar com
certeza sobre a jocosidade daqueles movimentos. Enfim, agora estava
perto da gaveta e era isso que importava. Tateou mais um pouco e
abriu a gaveta. Com os olhos mais acostumados à escuridão, não
demorou a encontrar a vela e o isqueiro.
Surpreendentemente, conseguiu acender a vela com facilidade e logo a
pôs sobre a mesa. Sentou-se na cadeira diante da escrivaninha e
ficou a observar o fogo enquanto regurgitava algumas lembranças
recentes. Estava satisfeito com aquele dia. No trabalho, conversara
com o chefe sobre a frequência de atrasos e a falta de produtividade
do seu colega de repartição e sobre como isso era absurdo e
desonesto. Mas afinal, por que diabos ele precisava conviver com
aquela situação? Que esse parasita fosse parasitar em outra
vizinhança! No fim das contas, o chefe foi implacável e tratou de
encaminhar o infeliz para o olho da rua. Como essa sensação de
dever cumprido o agradava. Parou de relembrar, porém sem desviar o
olhar do fogo.
Sentiu-se inspirado e decidiu reviver um antigo hábito da
juventude: escrever poeminhas. Retirou um retalho e um lápis da
mesma gaveta que retirara a vela. Observou a chama inquieta e a
maravilha das sombras projetadas ao seu redor. Seria um poeminha
sobre aquela cena. Uma tentativa de sintetizar aquele momento em
palavras. Estava enferrujado, mas a inspiração tem o seu efeito
revigorante. Escreveu e riscou até ficar contente com o resultado.
Leu em voz alta: No balanço da chama / a primeira dança / da
pequena sombra. Fechou os olhos brevemente e sorriu sem mostrar os
dentes. Ao abri-los, uma situação estranha aconteceu.
Uma pequena sombra em forma humana surgiu em pé sobre a superfície
da escrivaninha. Antes que pudesse demonstrar o seu espanto, a sombra
perguntou:
– Então, você está satisfeito com seu dia, não é?
Sem saber bem o porquê, respondeu à sombra como se falasse com
outra pessoa qualquer.
– Sim, posso dizer que foi um dia bastante satisfatório.
Finalmente, eu tive uma conversa com o meu chefe sobre o meu colega
relapso e ele tomou medidas drásticas. O infeliz agora não trabalha
mais lá.
A sombrinha falou de maneira provocativa:
– O mesmo colega que lhe emprestou aquele dinheiro dois anos atrás?
Que está com o filho com aquela doença grave? Que o imóvel corre o
risco de ser confiscado?
Ele respondeu sem jeito:
– Eu já paguei o empréstimo... Se ele sabia que estava numa
situação delicada, ele deveria ter se comprometido mais com o
trabalho. Regras são regras. Ele deveria ter chegado no horário e
cumprido a quota de produção.
A interlocutora inconveniente continuou as suas provocações:
– E se o motivo dele não se comprometer seja exatamente a sua
situação delicada? Ele se atrasava tanto assim? Dois anos atrás,
não era você quem deixava a desejar no trabalho?
O morador da Rua das Flores queria dizer “Mas é diferente...”,
entretanto não disse nada. Um gosto amargo ficou em sua boca, talvez
porque esse fosse o sabor de suas palavras não ditas. Já não
estava tão satisfeito com o seu dia. Talvez, amanhã fosse falar
novamente com o chefe e admitir que se enganara, mas pensou que as
coisas não eram tão simples assim. Ele poderia ficar sem emprego
também. Não havia garantias. O medo era maior do que o desejo de
redenção. Talvez, ele poderia ligar para o seu colega –
ex-colega, ex-amigo –, dizer que sentia muito e oferecer um
empréstimo. Decidiu que não ligar seria melhor para ambos. O pobre
infeliz não aguentaria uma vergonha dessas. Animou-se com a sua
sagacidade de pensamento, fechou os olhos e respirou fundo aliviado.
Quando abriu os olhos, a pequena sombra já não estava mais lá.
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