Conforme Charles Taylor, na
filosofia política, o multiculturalismo pode ser tomado como uma extensão da
política de igual dignidade surgida no Ocidente a partir do pensamento liberal.
O respeito igual que todo o indivíduo merece está fundamentado sobre uma base
universal de justificação que atribui a todos os seres humanos,
indiscriminadamente, características homogêneas que tornam os indivíduos
intrinsecamente dignos de respeito. Em termos políticos, esse princípio moral
se traduz em uma gama idêntica de direitos e deveres que todos possuem
igualmente dentro do quadro jurídico de um Estado-nação democrático. Todavia, o
multiculturalismo é um “braço” da política liberal que, de certo modo, se
revolta contra o corpo de ideias que está na sua origem.
Sem dúvida, o desenvolvimento do
pensamento liberal que exalta a liberdade e a dignidade do indivíduo foi um
ganho inestimável para a humanidade. No entanto, a objeção multicultural
direcionada a uma das bases do pensamento liberal (a igualdade) procura apontar
a limitação quanto à aplicação deste princípio. Segundo um crítico do
multiculturalismo, Brian Barry, tal objeção pode ser apresentada na seguinte
formulação: “a mesma lei pode ter impactos diferentes sobre diferentes pessoas
em virtude de suas crenças religiosas ou práticas culturais, portanto, a
reivindicação liberal de que o igual tratamento pode ser garantido através da
aplicação de um sistema uniforme de leis é falso”. Tal declaração remete exatamente
à extensão realizada pelo multiculturalismo em relação ao pensamento liberal.
Isso
ocorre porque a luta por reconhecimento e direitos que antes estava mais ligada
ao nível pessoal do indivíduo passou, sobretudo no decorrer do século XX, a ser
compreendido também através da categoria de grupo. Como nos diz Appiah, “a
identidade individual de cada pessoa é vista como tendo duas dimensões
principais”, a dimensão pessoal e a dimensão coletiva. A primeira dessas
dimensões remete aos traços psicológicos pelos quais nos distinguimos dentro de
nosso grupo (inteligência, perspicácia, charme, etc.), já a segunda, diz
respeito a uma distinção sociológica, caracterizada pelos traços compartilhados
(comportamento, crenças, etc.), os quais fornecem uma base comum para a
construção da identidade individual no interior de um grupo.
Assim, povos nativos, minorias
nacionais (indígenas norte-americanos ou québécois no Canadá) e outros grupos
minoritários, em nome de suas identidades coletivas, passam a reivindicar não
só o reconhecimento e respeito, mas também direitos especiais para o grupo, uma
vez que seus costumes e crenças não se coadunam a muitos dos costumes e das
crenças mantidas por uma maioria nacional. Nesse sentido, a objeção multicultural
ao princípio liberal da igualdade procura reformular a própria noção de igual
dignidade. A categoria da “diferença” entra numa espécie de choque dialético
com a “igualdade”, travando um embate que, vamos aqui supor, é necessário para
a emergência de um modelo político democraticamente mais adequado, dado o
contexto de uma sociedade constituída por uma diversidade cultural. Precisamos
de leis mais justas, nas quais grupos minoritários não sofram consequências
negativas devido à aplicação jurídica de princípios que, na sede por
abrangência, acabem fornecendo diretrizes etnocêntricas e homogeneizadoras que
desrespeitam as diferenças e minimizam ou desconsideram o papel que as
identidades coletivas possuem na vida dos integrantes destes grupos.
Obviamente, não existem soluções
simples no terreno da política. Uma crítica recorrente se refere ao aspecto
comunitário do multiculturalismo. Uma vez que as reivindicações não falam apenas
de tolerância ou respeito, mas também de concessões políticas na forma de
direitos que possam garantir a sobrevivência das práticas e crenças
características destes grupos, fica a questão: como atender a tais
reivindicações no caso de grupos cujas práticas e costumes potencialmente (ou
efetivamente) acarretam a discriminação ou a supressão das liberdades
individuais no interior destes grupos? Através de uma apreciação comunitária
dos fatos, somos levados a admitir que os diversos aspectos de nossa cultura de
origem fornecem os meios necessários para a formação de um “eu” consciente. Sem
os elementos culturais na forma de uma linguagem com a qual trocamos
experiências com os outros, não é possível edificarmos um self genuinamente humano, capaz de avaliações morais e de relações
significativas com o mundo a nossa volta. No entanto, existem grupos cujas
tradições possuem traços patriarcais fortemente enraizados, os quais levam os integrantes
homens a compreender depreciativamente o papel das mulheres dentro do grupo. Em
muitas tradições, as mulheres sofrem desde restrições à possibilidade de deliberar
sobre algo dentro do grupo, até agressões físicas e mutilações que são “culturalmente”
aceitas pela maioria dos membros destes grupos. Homossexuais e ateus também
podem sofrer punições de uma maioria religiosa devido às suas orientações e
preferências pessoais.
A discriminação intra-grupo é um problema
porque as práticas discriminatórias destes grupos entram em conflito com alguns
dos valores essenciais das democracias ocidentais que versam acerca dos
direitos individuais e dos direitos humanos universais. Não existe uma solução
fácil porque não podemos simplesmente nos valer dos princípios que, dentro da
nossa sociedade, são vistos como “absolutamente” coerentes para assim rejeitar
as práticas de algumas culturas, taxando-as de primitivas ou irracionais. O
âmbito da “igualdade” que acreditamos ser desejável universalmente, em muitos
casos, não pode ser totalmente apreciado (compreendido) por aqueles indivíduos
que, ao longo de suas vidas, não partilharam de experiências sociais nas quais
tal princípio vigorou.
Desse
modo, creio que o diálogo intercultural e uma educação multicultural podem
fornecer meios para melhorar as situações mais complicadas. Uma sociedade
plural e diversificada culturalmente não pode abdicar de projetos educacionais
e de interação social que permitam uma maior aproximação entre grupos
diferenciados, valorizando a troca de experiências e a possibilidade de
ampliação de nosso espectro moral/conceitual, ou, como prefere Taylor, do
alargamento de nossos “horizontes de significado”.
Atualmente presenciamos o ressurgimento de
ideias politicamente obscuras, as quais ameaçam os valores democráticos não só
de nosso país, mas também de outras nações do Ocidente. O espírito nacionalista
e extremista que descaradamente ostenta o desprezo por minorias culturais e por
outros grupos marginalizados vem ganhando popularidade e força (principalmente
através da mídia e das redes sociais digitais), buscando ofuscar os valores de
igualdade e liberdade em nossa sociedade. Diante disso, acredito que questões
em torno do multiculturalismo e da convivência em uma sociedade diversificada
precisam ganhar mais centralidade. Não é preciso que um grupo se feche em si
mesmo para preservar suas tradições, tampouco é necessário que todos abracem um
ideal monocultural sustentado pelo mercado capitalista. Mas precisamos de uma
maior abertura à realidade do “outro” diferente, sem a arrogante superioridade
daquele que se disponibiliza para a ascensão a um novo grau de moralidade, mas
simplesmente aberto ao aprendizado intercultural. Sobre isso, sustento que é
fundamentalmente por meio da convivência que podemos tanto aprender como
ensinar formas de ver o mundo e de ver a nós mesmos, criando sempre novas
dimensões de valoração.
Referências
APPIAH, K. A. “Identity, Authenticity, Survival:
multicultural societies and social reproduction” In: GUTMAN, Amy (Org.). Multiculturalism: examining the politics of
recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 151.
BARRY, B. Culture and Equality: An Egalitarian Critique of
Multiculturalism, Cambridge, MA: Harvard, 2001, p. 34.
TAYLOR, C. “The politics of recognition” In: GUTMAN,
Amy (Org.). Multiculturalism: examining
the politics of recognition. Princeton: Princeton University Press, 1994.
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